Protocolos de consulta na prática: ferramenta de mobilização de direitos das comunidades tradicionais
- Instituto Irmãs da Santa Cruz
- 9 de out.
- 6 min de leitura
Caroline Dias Hilgert e Michael Mary Nolan
Advogadas
Assessoramento, Defesa e Garantia de Direitos
Instituto das Irmãs da Santa Cruz
ADD/IISC
O protocolo de consulta é um instrumento construído por povos e comunidades tradicionais para fortalecer o direito à consulta livre, prévia e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trata-se de um documento em que cada povo ou comunidade define, com base em sua organização social e cultural, como deve ocorrer o processo de consulta sempre que o Estado pretender adotar medidas – sejam obras, leis, políticas públicas ou projetos – que impactem suas vidas e territórios.
A elaboração de protocolos próprios de consulta reflete, antes de tudo, o princípio da autodeterminação dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Trata-se de um movimento crescente não apenas no Brasil, mas em todo o continente, onde essas comunidades afirmam sua voz e sua capacidade de definir os rumos de seus territórios e de suas vidas.
O Programa de Assessoramento, Defesa e Garantia de Direitos do Instituto das Irmãs da Santa Cruz, ao longo de quase uma década de atuação, vem desempenhando papel fundamental na promoção, articulação e fortalecimento desse direito, apoiando comunidades na construção e difusão de protocolos próprios.
A Convenção 169 da OIT
A Convenção estabelece parâmetros claros para os Estados. O artigo 6º prevê que os governos devem:
a) consultar os povos interessados, por meio de procedimentos adequados e de suas instituições representativas, sempre que forem previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente; b) criar mecanismos para garantir a participação efetiva dos povos na tomada de decisões em diferentes níveis; c) apoiar o fortalecimento das instituições próprias dos povos e disponibilizar recursos necessários para esse fim.
O mesmo artigo determina que as consultas devem ser realizadas de boa-fé, de maneira apropriada às circunstâncias, buscando acordo e consentimento sobre as medidas propostas.
O artigo 15 reforça a proteção aos direitos sobre os recursos naturais existentes nos territórios, garantindo a participação dos povos na gestão desses bens, bem como indenização justa por eventuais danos decorrentes de sua exploração.
Experiências
Este texto observou, a partir de relatos das próprias comunidades, como o protocolo de consulta vem sendo utilizado pelas comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP) e pelo povo indígena Enawene Nawe (MT).
O Protocolo das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (2020)
O protocolo das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira foi lançado em 2020, ao longo desse tempo, segundo André Ribeiro, quilombola da comunidade André Lopes e articulador da EAACONE, o protocolo vem sendo “uma ferramenta bastante importante, que nos últimos anos está sendo utilizada pelas comunidades como forma de enfrentamento contra a opressão e a retirada de direitos”.
Na prática, sempre que surge uma medida que afeta as comunidades, o protocolo é evocado:
“Óh, protocolo de consulta, respeita a norma, vamos entender melhor essa situação antes de tomar qualquer decisão”, relatam.
Assim, o documento funciona tanto em processos coletivos – como planos de manejo ou empreendimentos que atingem várias comunidades – quanto em situações locais, reforçando a proteção de direitos.
O Protocolo dos Enawene Nawe (2023)
O protocolo dos Enawene Nawe foi elaborado com participação ampla e traduzido em sua língua materna. Conforme nos contam os Enawene Nawe, com ajuda do intérprete Fausto Campoli, o protocolo representa uma ruptura com práticas anteriores, quando decisões eram tomadas na cidade por pequenos grupos.
Segundo Kolaliene, um dos nove chefes do povo:
“Antes do protocolo de consulta, as decisões estavam sendo tomadas na cidade, com um pequeno grupo de pessoas. Agora, as decisões são tomadas na aldeia, com participação de velhos, velhas, crianças, mulheres e chefes”.
O professor Oloho Enawene, da aldeia Doloikwa, reforça:
“Hoje somos muito felizes, porque agora temos consulta prévia. Toda vez a reunião vai ser marcada na aldeia, com participação dos caciques, mulheres, crianças, parceiros como FUNAI, DPU, CIMI, OPAN. Nosso tempo precisa ser respeitado”.
Já Alohá Enawene, também professor, destaca o caráter educativo e político do protocolo:
“O protocolo é importante para nossos professores estudarem a Convenção 169 e depois explicarem para toda a comunidade. A consulta prévia é essencial para o respeito à nossa cultura e para que o branco não entre em nossa terra sem nossa decisão. A decisão é nossa e segue o protocolo de consulta”.
Protocolos como ferramentas jurídicas e políticas
Os protocolos têm se mostrado instrumentos eficazes não apenas na mobilização comunitária, mas também em processos jurídicos.
● No Vale do Ribeira (SP), o Protocolo Quilombola foi utilizado como subsídio na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7008, proposta pelo MPF contra lei estadual que concedia à iniciativa privada a gestão de parques sobrepostos a territórios indígenas e quilombolas – entre eles o Parque Estadual da Caverna do Diabo. Diversas organizações atuaram como amicus curiae, fundamentando a violação ao direito de consulta.
● No Mato Grosso, a Defensoria Pública da União utilizou o Protocolo Enawene Nawe em Ação Civil Pública contra propostas de compensação de empresas responsáveis por Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) no Rio Juruena, alegando violação ao direito de consulta.
Considerações finais
A elaboração de protocolos próprios reflete o princípio da autodeterminação dos povos indígenas e comunidades tradicionais, além de ser uma tendência internacional.
● Colômbia: a Corte Constitucional reconhece os protocolos como instrumentos jurídicos vinculantes.
● Bolívia: há avanços na regulamentação legal, com maior efetividade.
● Peru: a tentativa de regulamentação gerou mais burocracia que efetividade.
No Brasil, os protocolos são autônomos e elaborados pelos próprios povos, mas o cumprimento depende de compromisso político, assim, a experiência tem sido paradoxal: de um lado, multiplicam-se protocolos quilombolas, indígenas, ribeirinhos, vazanteiros e extrativistas, elaborados com grande consistência e legitimidade. De outro, persiste o descompromisso político de governos e setores econômicos, que insistem em atropelar direitos constitucionalmente garantidos.
Casos como o marco temporal, recentemente rejeitado no Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Tema 1031, mas ainda assim transformado em lei pelo Congresso (Lei 14.701), mostram a tentativa de reduzir direitos originários e relativizar a Convenção 169 da OIT. A Lei 14.701 ansce eivada do vício da falta de consulta prévia aos povos indígenas.
As constantes investidas de projetos de mineração em terras indígenas, a expansão de hidrelétricas na Amazônia e no Centro-Oeste e a flexibilização de normas ambientais demonstram que os protocolos de consulta não são apenas documentos jurídicos: são ferramentas de resistência política e existencial diante de uma agenda de desenvolvimento que insiste em invisibilizar os povos tradicionais.
Embora o STF já tenha reconhecido a obrigatoriedade da consulta – como na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, durante a pandemia de COVID-19, atualmente está em julgamento no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5905, proposta pelo Estado de Roraima, que versa sobre a eficácia da Convenção 169 da OIT, no que tange ao direito de consulta livre prévia e informada, marco temporal, entre outras ameaças especialmente em relação aos supostos desenvolvimentos energéticos almejados pelo Estado. Em 03/09/2025 após ouvir as sustentações orais, o julgamento foi suspenso.
Ademais, em que pese o esforço do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) na realização de um projeto mais amplo do governo federal de elaborar 20 protocolos em diferentes biomas, tal iniciativa pode distorcer o instrumento, vez que sua elaboração está sendo promovida pelo próprio Governo. Os protocolos devem ser autônomos em relação a cada povo, devendo o governo respeitar a organização social e a forma de decidir dentro da perspectiva multicultural, destacando-se neste ponto que a cultura é dinâmica, de modo que os protocolos de consulta não são necessariamente estáticos.
Não cabe ao Estado brasileiro normatizar o conteúdo dos protocolos já que depende da organização de cada povo, mas sim regulamentar o respeito à consulta e às formas de tomada de decisões de cada povo independentemente de que haja por escrito um protocolo.
Assim, para que os protocolos de consulta se consolidem como ferramentas de mobilização social, de educação comunitária e de reivindicação jurídica e fortaleça a luta pelo reconhecimento e respeito à diversidade cultural e territorial dos povos e comunidades tradicionais, eles devem ser elaborados de forma autônoma, a partir da reflexão do próprio povo ou comunidade que deve estar totalmente apropriado do conteúdo deste instrumento.
Mais do que procedimentos técnicos, os protocolos de consulta são expressões de resistência e futuro. Eles traduzem a afirmação de que nenhum projeto de lei, nenhuma obra de infraestrutura e nenhuma decisão estatal pode se sobrepor ao direito dos povos tradicionais de existir em seus territórios e decidir sobre seu próprio destino.
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